‘Woodstock brasileiro’: como está fazenda onde festival realizado durante a ditadura reuniu mais de 100 mil pessoas


Primeira edição do Festival de Águas Claras, em Iacanga (SP), completa 50 anos nesta sexta-feira (17). Criador e organizador relembra um dos maiores eventos de música e arte da história brasileira. Iacanga foi palco do Festival Águas Claras, no interior de SP
Reprodução/Águasclarasfestival
Em 1975, há 50 anos, o que era para ser apenas uma reunião entre amigos organizada por um jovem de 22 anos transformou-se na primeira edição de um dos maiores festivais de música de todo o Brasil: o Festival de Águas Claras, conhecido também como o “Woodstock brasileiro”, que aconteceu durante a ditadura militar no Brasil.
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A ideia de Antonio Checchin, conhecido também como Leivinha, era reunir amigos, funcionários do local e familiares em torno de uma peça teatral que ele mesmo escreveu, realizando um evento cultural na Fazenda Santa Virgínia, propriedade da família, em Iacanga.
O local virou uma plantação de laranjas e símbolo de memórias para quem participou e até para a família daqueles que viveram a experiência, que completa 50 anos nesta sexta-feira (17).
No entanto, a ideia principal acabou se transformando a partir do momento que bandas e artistas que não eram tão conhecidos no interior de SP e traziam ideias de quebra de padrões entraram em contato pedindo a oportunidade de participar da “cena” cultural que se formaria na pequena cidade.
Pessoas de todo o Brasil se deslocaram até Iacanga para festival de música
Reprodução/Águasclarasfestival
Com isso, aos 22 anos, a primeira edição do Festival de Águas Claras reuniu mais de 15 mil pessoas em três dias de evento, com a divulgação essencialmente na base do “boca a boca”.
Nas redondezas da fazenda, dos dias 17 a 19 de janeiro de 1975, jovens de diversas partes do país se reuniram para apreciar música e viver os ideais do movimento hippie, impulsionados pela geração beat dos anos 60. Alguns deles, inclusive, faziam loucuras para conseguir ter acesso ao festival.
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A grandeza de Iacanga
A repercussão nacional do evento alavancou outras edições, como em 1981, 1983 e 1984, ano em que Rita Rufato, de Iacanga, esteve presente.
Ao g1, a professora conta que entrou escondida no porta-malas de um Opala laranja do amigo do seu irmão e que estar no festival a fez conhecer ainda mais o cenário musical dos anos 1980.
“Foi uma experiência fantástica, minha mente se abriu para várias coisas que aconteciam na época, como o movimento da contracultura, como o movimento hippie… E me apaixonei pela história do Brasil, porque o festival traz esse contexto, todo aquele movimento chegando ao país”, relembra.
Belchior durante o festival de Águas Claras, em Iacanga, interior de SP, em 1984
Jair Aceituno/Estadão Conteúdo
Além disso, a professora conta como o festival impactou a cidade de Iacanga, que recebeu mais de 100 mil pessoas na ocasião, entre visitantes e cantores ligados à Musica Popular Brasileira (MPB), como Gilberto Gil, Luiz Gonzaga, Hermeto Paschoal, Alceu Valença, Fagner, Jards Macalé, Erasmo Carlos e Raul Seixas.
“A cidade virou um alvoroço, acabou a gasolina, acabaram as coisas no mercado, e era gente para tudo quanto é lado. A gente encontrava cantores andando pela cidade, eu mesma vi o Raul Seixas jogando truco lá na praia e andando aqui na rua principal.”
Raul Seixas foi um dos nomes a subir no palco do Festival Águas Claras de Iacanga
O Barato de Iacanga/Divulgação
O cenário político da época
No contexto da ditadura militar, Leivinha conta que foi preciso assinar um documento, ainda na primeira edição, que aconteceu em 1975, para que o festival fosse autorizado, já que o delegado Silvio Pereira Machado, do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) do município, havia barrado o evento faltando 15 dias para o início do festival.
“Ele falou: ‘Você não vai ler?’ . E eu disse: ‘Se eu leio, eu não assino, e, se eu não assino, não faço festival, então eu assino e depois vejo como é que fica'”, relembra Leivinha, em entrevista ao g1.
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, além de mandar policiais militares para acompanhar o festival, elaborou o Relatório Festival Hippie Águas Claras ao final do evento, no qual apontava os excessos e as transgressões dos participantes.
“O consumo de tóxico era feito pela sua totalidade dos participantes, destacando-se o uso de maconha, a qual era fumada abertamente durante o dia e à noite, sendo observada grande habilidade de muitos deles na confecção de cigarros, denotando serem viciados de longa data”, relatava um trecho do documento.
Organizadores precisaram de autorização do Dops para realizar festival em Iacanga
Irmo Celso/Acervo pessoal
As últimas edições
Em um período menos restritivo da ditadura, a alternativa encontrada pelos organizadores para obter a liberação para realizar a 2ª edição do festival foi “abrasileirar” o evento, que ainda buscava manter vivo o espírito hippie e reuniu mais de 100 mil pessoas.
Na 3ª edição, os organizadores conseguiram convencer João Gilberto, o pai da Bossa Nova, a se apresentar em meio à efervescência cultural que era considerado o Festival Águas Claras. Mesmo sob chuva, o artista subiu ao palco por volta das 6h e fez aquele que foi seu primeiro e único show ao ar livre.
Gilberto Gil e João Gilberto foram dois músicos a se apresentarem em Iacanga
Reprodução/Águasclarasfestival
Com o sucesso, a 4ª e última edição do festival ocorreu durante o carnaval de 1984. Apesar de Leivinha não acreditar que a época seria a mais apropriada para o festival, o evento aconteceu por conta do contrato assinado com financiadores e, durante os dias previstos para a celebração, um temporal atingiu a região.
Com isso, a despedida do maior festival de música brasileiro foi de menor porte e muitos artistas, como João Gilberto, Luiz Melodia, Clementina de Jesus, Moreira da Silva, cancelaram suas apresentações em razão do clima.
O que mudou desde o fim
50 anos após a primeira edição do Festival de Águas Claras, a memória de um dos maiores eventos de música em todo o Brasil permanece viva e continua sendo espalhada pelos filhos daqueles que prestigiaram o evento, como Caíque Rufato, filho de Rita, e Thiago Mattar, diretor responsável pelo documentário “O Barato de Iacanga”, de 2019.
O longa surgiu pelo desejo de Thiago em reunir informações sobre o evento que marcou a geração de seu pai e acabou sendo recebido por festivais e premiações, como o festival “É Tudo Verdade” e o “In-Edit Brasil.”
Caique, influenciado pela experiência da mãe nas últimas três edições do festival, decidiu criar uma página para relembrar a importância da cultura hippie não apenas para o município de Iacanga, mas para toda a região centro-oeste paulista.
Leivinha, fundador do Festival Águas Claras em Iacanga
Arquivo pessoal
Ao ser questionado sobre como se sente ao pensar que faz 50 anos da primeira edição, o fundador comenta sobre a vida como um todo:
“Tudo passa. A vida é muito rápida e muito boa. Eu me sinto feliz de saber que eu contribuí com a cultura musical, principalmente nacional. Acho que eu fiz um evento que realmente mostrou a cultura musical brasileira”, finaliza.
Documentário ‘O Barato de Iacanga’ é exibido na cidade que recebeu festival
*Colaborou sob supervisão de Gabriela Almeida
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